Freud e a noção de inconsciente

A psicanálise, ao longo do tempo, é vista como uma teoria sobre como a linguagem afeta o sujeito, assim como uma proposta clínica que centra a cura na fala. Ela foi proposta por Sigmund Freud[1] (1856 / 1939) como forma de resolver o problema da transferência, através da repetição do sintoma do paciente, cujas representações das coisas, objetos e fatos se liga à representação da fala e à representação inconsciente das emoções.
Para a construção da teoria psicanalítica, Freud partiu do pensamento científico de sua época e foi, ele mesmo, surpreendido pela descoberta do inconsciente. Ele formalizou a existência do inconsciente e este acontecimento estabeleceu uma ruptura com o modelo de pensamento vigente na época. Nasceu assim a psicanálise, construída passo a passo até tornar-se o que hoje se conhece como campo freudiano. Este, posteriormente separado da medicina, passou a fazer parte da cultura. Por isso, muitos dos termos que nomeiam alguns de seus conceitos são hoje utilizados pelo senso comum. Vale lembrar que Freud não os inventou, eles foram encontrados no vocabulário existente. Termos tais como: inconsciente, transferência e repetição são palavras que, retiradas de seu uso na linguagem ordinária, foram tomadas como conceitos por Freud. Ao empregá-las como conceitos psicanalíticos, Freud estabeleceu um corte, separando-os do sentido comum.
Se Freud fundou a psicanálise a partir de sua escuta das histéricas, certamente foi porque percebeu que a razão médica, ao considerar o psíquico como biológico, esgotara-se diante das dificuldades que este psíquico lhe apresentava.
Segundo Garcia-Roza (2004), Freud já havia compreendido que a dimensão humana, justamente a que permite ao homem falar, não é somente de ordem biológica. Ao contrário, essa dimensão só se instaura quando, ao entrar no mundo da linguagem, o homem sai da sua condição de infans, ainda incapaz de falar, subsumindo o que tinha de apenas biológico ou animal na nova dimensão simbólica. É esta perda constitutiva, inaugural para o ser falante, que vai lhe permitir desejar: só se pode desejar porque algo falta, e a falta tem sempre a ver com o que, de saída, se perdeu.
O caráter de enigma dos sintomas neuróticos, que se apresentavam em sua clínica, levou Freud a sentir a necessidade de construir o conceito de inconsciente. Enigma que também se fazia presente, na vida cotidiana, em uma série de fenômenos aparentemente tão banais que, até então, não tinham merecido qualquer atenção especial. Quando se diz algo que não se queria dizer, alguém que não o eu consciente disse esse algo. O inconsciente existe e se impõe através dos sonhos, chistes e operações falhas que afetam tanto a memória (esquecimentos), quanto a fala, a leitura, a escrita (lapsos) ou as ações (atos sintomáticos), que são também chamadas de formações inconscientes.
A ideia central do pensamento freudiano é a noção do inconsciente. Mas esse inconsciente não se reduz a um lugar onde os processos anímicos acontecem fora do domínio da consciência. Para Freud, o inconsciente é dinâmico e não um conceito meramente descritivo. Antes, porém, de conceituar o inconsciente, Freud o formulou como hipótese, conforme se pode observar.
Quase todos os sintomas histéricos se haviam formado como restos (…) de vivências plenas de afeto que, por isso, chamamos depois de ‘traumas psíquicos’; e sua particularidade se esclarecia por referência à cena traumática que os causou. (…) eram determinados pelas cenas cujos restos mnêmicos eles representavam, e já não se devia descrevê-los como operações arbitrárias ou enigmáticas das neuroses. Anotemos só um desvio a respeito daquela expectativa. Nem sempre era uma única vivência que deixava como seqüela o sintoma; freqüentemente haviam concorrido para esse efeito numerosos traumas, às vezes de um mesmo tipo. Toda esta cadeia de lembranças patogênicas devia ser reproduzida em sua seqüência cronológica, e certamente em sentido inverso: as últimas primeiro e as primeiras por último; era de todo impossível avançar até o primeiro trauma, que costumava ser o mais eficaz (…) (FREUD, 1910/1987, p.11).
Este trecho faz parte da primeira das cinco conferências sobre psicanálise, pronunciadas por Freud nos Estados Unidos em 1909 e publicadas em 1910. Estas conferências resumem o que, desde 1893, ele vinha formulando sobre sua teoria. As idéias expostas acima foram desenvolvidas na obra A etiologia da histeria, publicada em 1896.
Conforme Brenner (1997), a sede metapsicológica do processo da histeria estaria localizada nas parcelas inconscientes das instâncias narcisistas (ego, ego ideal, superego, ideal do ego), como seu conteúdo representacional. As imagens que formam o inconsciente são originadas pela experiência corporal do ego primitivo. A busca de perceptos adequados de prazer só se realiza a contento quando as sensações são incorporadas ao ego, associando-se às imagens vinculadas uma situação relacional específica.
Freud considera o id totalmente inconsciente, distante de qualquer lógica ou racionalidade, buscando alcançar seus objetivos e eliminar as pressões de energias nele armazenadas. O ego, na busca do prazer do id, funciona como um mediador racional das exigências do id e do mundo exterior, reduzindo ou adiando o seu prazer. Finalmente, tem-se o superego, local onde assimilamos as normas e os valores sociais. Busca-se, nesse sistema, um equilíbrio, sendo esse papel desempenhado pelo ego, uma vez que o id tudo quer; e, o superego, a partir do complexo de Édipo e da castração, tudo nega.
É em torno da relação de nutrição (mãe-nenê) que os perceptos, originalmente, se estruturam. Isso tendo como matriz o contato corporal, transformando o corpo em imagem, surgindo, então, a primeira sensação de prazer, dando-lhe o caráter de objeto imaginário. Essa relação descreve o que ficou conhecido na psicanálise como a primeira “experiência de satisfação” que, perdida (na verdade nunca obtida), jamais será repetida. Descrevê-la é também uma forma de apresentar a fundação do inconsciente e a constituição do desejo. Trata-se de uma experiência que se pode considerar como mítica, no sentido de que remete a uma perda originária. A esse respeito, o psicanalista afirma que “das percepções que nos chegam, em nosso aparelho psíquico fica um traço (…)” (FREUD, 1925/1987, p. 531)
Fica um traço, porque a própria percepção se perde. E é a partir destes traços primeiros que o inconsciente poderá se constituir. Quando um bebê recém-nascido grita ou chora pela primeira vez, a mãe, supondo-o com fome, interpreta a necessidade manifestada pelo grito ou choro da criança como necessidade de mamar. Dá-lhe então o seio, oferecendo-lhe este objeto particular. A fome, como necessidade, é satisfeita e, neste sentido, a criança faz “a experiência da vivência de satisfação que cancela o estímulo interno” (FREUD, 1925/1987, p. 557).
Mas, segundo Freud (1925/1987), um componente especial desta vivência é a aparição de uma percepção particular, o seio; este, no entanto, se perde. Porém, sua imagem mnêmica fica, daí em diante, associada ao traço que deixou na memória a excitação produzida pela necessidade de alimentar-se. Algo ficou, portanto, definitivamente marcado na memória como traço do que se perdeu. Fica a lembrança de uma percepção perdida que implicou em uma satisfação a mais. Esta satisfação a mais que se perde está relacionada à excitação produzida pela necessidade.
Para Freud, é justamente no contato da boca com o seio, quando a criança recebe o alimento, que se dá a percepção desta satisfação a mais que, com a própria percepção, se perde. E se perde no instante mesmo da experiência, deixando-a, então, como incompleta. É, pois, uma satisfação perdida, mas que deixou uma lembrança que a criança tentará repetir, uma busca constante por toda a sua vida, a busca do gozo perdido. Instalou-se o Das Ding (a coisa), porque desta lembrança ficou, no próprio corpo da criança, um resto de satisfação a mais. Pode-se aqui falar de instauração da sexualidade, na medida em que este resto de gozo se relaciona com a erogeneização da boca.
A partir dessa mítica primeira experiência de satisfação, Freud inicia a conceituação do desejo. Segundo ele,
da próxima vez que sobrevenha a necessidade (…) surgirá um impulso psíquico que procurará investir novamente a imagem mnêmica daquela percepção, isto é, (…), restabelecer a situação da satisfação primeira. Um impulso desta natureza é o que chamamos desejo; a reaparição da percepção é a realização do desejo, e o caminho mais curto para isto é o que leva da excitação produzida pela necessidade até o investimento completo da percepção. Nada nos impede supor um estado primitivo do aparelho psíquico em que este caminho era realmente percorrido desta maneira e, portanto, o desejo terminava em um alucinar (FREUD, 1900/1987, p.557-8).
Para Freud o desejo surge, então, como busca da satisfação com um objeto perdido que só pode ser encontrado na alucinação. O desejo nasce como um impulso psíquico que empurra por um caminho regressivo. Este caminho é o que vai dos traços de memória à imagem mnêmica de uma percepção que só se produz alucinatoriamente, justamente porque o objeto não está lá.
Assim, Freud (1900/1987) afirmou que, no entanto, o eu “não era senhor em sua própria casa”, uma vez que o ego não teria o poder de decisão autônoma no campo mental, onde outras instâncias conviveriam. A força do ego, no entanto, é que daria a última palavra nas decisões e conduziria os atos humanos, sempre condicionada pelo inconsciente. Essa percepção possibilitou a construção de uma nova imagem do homem, não mais um sujeito apenas da consciência mas também movido pelos poderes do inconsciente.
Entretanto, deve-se destacar que Sigmund Freud não enfatiza explicitamente em suas obras a noção de sujeito, aprofundando-se na questão da interação entre o sujeito, o inconsciente e a linguagem.
[1] Freud nasceu em Freiber, na Áustria, em 1856. Médico e neurologista, passou grande parte da sua vida ocupado com a psicanálise. Pesquisador com profundo interesse pelas questões humanas, questionava a ciência no seu limite. Curioso, passou a investigar a histeria, considerada um fenômeno clínico na época, diante da qual a ciência nada podia fazer.